Longe vão os tempos dos fatos armani, do Ferrari Daytona, das cores pastel ou dos neons, tudo o que criou o mito e a fama da já clássica série Miami Vice. Desse ícone dos anos 80, apenas sobreviveram os nomes dos personagens principais. Esta Miami, tem mais semelhanças com a Los Angeles de Colateral ou Heat, do que prpriamente com a solarenga Miami dos anos 80. Michael Mann, o realizador, abstracionista, poético, duro, experimental, perfeccionista e inovador, pegou no conceito original da série, e levou-o para um patamar mais elevado. Um patamar a que se pode chamar de mais adulto. Se à sensação que trespassa o filme do início ao final, é o de perda e da impossibilidade de vida para além da profissão. E num filme de Michael Mann, a profissão de um personagem é a sua maior obsessão assim como a sua perdição. Era assim em Thief, em Manhunter, em Heat ou em Colateral, com personagens torturados por uma solidão fatídica da qual não conseguem (ou não querem) escapar. Foi assim com Neil McCauley ansioso por iniciar uma nova vida longe do crime (Heat) e assim foi com Vincent Collateral que paga o preço mais caro, por criar uma relação de amizade com o seu taxista morrendo sozinho num metro de LA (Collateral), cidade de todas as solidões nos filmes de Mann. A estes personagens, pode se juntar agora este Sonny Crocket, interpretado por Collin Farrel com uma intensidade dramática (sem um único exagero interpretativo) digna de um filme de Michael Mann. O personagem de Crocket é o irmão espiritual de Frank em Thief, Jeffrey Wigand em The Insider ou mesmo de essa complexa e torturada alma que é Will Graham em Manhunter.
Todos eles devido às suas convicções, acasos do destino ou simplesmente por falta de alternativa, têm mais cedo ou mais tarde de deixar as suas relações para trás entregando-se assim na solidão que possibilitará resolver (ou não) o conflito em que se encontram. Este facto é mais uma vez assinalado em Sonny Crocket que ama a sua profissão mas que anseia por uma criminosa Isabella, tendo que no final tomar a decisão típica de um homem de Mann. O filme começa como acaba, abruptamente, como um pedaço da vida de alguém, com uma backstory e com uma continuação que nos são vedadas. O realismo (assim como a realidade) sempre foi uma das obsessões de Mann. Senão como justificar a utilização de ferramentas utilizadas em assaltos reais como adereços em Thief, ou da imersão de William Petersen no personagem de William Graham ao ponto da perda de identidade do próprio actor (facto assumido pelo próprio), ou então os 107 locais de filmagem de Heat, todos reais, com uma recusa por parte de Mann em utilizar qualquer tipo de cenário em estúdio. Em Miami Vice esse sabor do real está bem patente nos procedimentos policiais, assim como na gestão da narrativa, que foge dos clichés como se fugisse da peste. Trata-se de momentos na vida destes personagens, que no fim acabam por ter uma conclusão algo inconclusiva (e não é assim na vida real?). Voltando ao estilo do filme, parece-me claro que a partir de The Insider, Michael Mann, começou a sua fase mais experimentalista enquanto cineasta. Se por um lado a câmara ao ombro transmite uma sensação de realismo dinâmico, a mesma por vezes cria um lirismo poético que transcende a própria imagem ( neste particular o uso do foque/desfoque é bastante eficaz ). Longe estão os neons e luzes de Thief, Manhunter, Heat e claro está da já referida série Miami Vice.
Ainda só uma nota especial para a importância da música em Miami Vice (assim como em toda a carreira de Mann). Ao ouvirmos os acordes iniciais de Numb, dos Limp Bizkit, no início do filme, podemos assustar-nos um pouco, mas nas mãos de Michael Mann esses acordes conjugados com a imagem e a situação narrativa, criam um ambiente a que um crítico francês (referindo-se à utilização de música em Miami Vice a série) chamou de “pop transcendental”. E agora digam-me uma coisa, não é isso mesmo que sucede no momento em que Crocket e Isabella navegam mar adentro ao som de Moby? Um momento mágico num filme desiludido e cruelmente belo.
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